Em Portugal, a Astronomia é um universo em expansão
Em dezembro de 2000, Portugal tornou-se Estado Membro do ESO. Desde então, a Astronomia tem vindo a crescer em Portugal, cuja academia e indústria têm participado cada vez mais em projetos internacionais relevantes.
José Afonso ainda não tinha chegado aos 10 anos de idade quando um livro fez desembrulhar o fascínio pelo universo e pelas questões que nele moram. “As últimas páginas tinham o mapa do céu. Comecei a identificar as estrelas e constelações e achei fascinante a que distâncias imensas estão e o que é que poderiam albergar”, conta o co-fundador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IAstro) e investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL).
O cosmos tem destas coisas: bastaram as páginas de um livro para influenciar o percurso de alguém. Bastou o céu e a dança dos corpos celestes para que a humanidade encontrasse soluções e respostas ao longo dos séculos. A busca pelo conhecimento acerca do universo não é coisa recente e antecede, em muito, a invenção do telescópio no século XVII — afinal, foi a observar as estrelas que os humanos conseguiram, há milénios, identificar diferentes estações e, com isso, elevar a agricultura a um novo patamar.
Há ainda muito para entender, mas “o conhecimento do universo tem vindo a acelerar desde as últimas décadas”. “As questões que se colocam hoje são diferentes das que se colocavam há 20 anos: temos novas tecnologias, novas capacidades de observação em todos os comprimentos de onda. Portanto estão-se a abrir muitas portas”, aponta José Afonso.
O que significa isso para Portugal? O co-fundador do IAstro considera que a adesão de Portugal à Agência Espacial Europeia (ESA) e ao Observatório Europeu do Sul (ESO) em 2000 foram momentos-chave para a consolidação do país nesse sentido. “No início deste século atingimos um ponto de reconhecimento ao nível de qualquer outro país, e temos aumentando essa posição. Temos participado em alguns dos consócios da linha da frente da astrofísica”, diz. Na verdade, a adesão de Portugal ao ESO foi, à semelhança do que aconteceu com o processo para a entrada na ESA, apenas o culminar de anos de trabalho. Começou já na segunda metade da década de 1980, quando Teresa Lago, professora catedrática e fundadora do Centro de Astrofísica da Universidade do Porto, preparou a proposta de associação de Portugal à organização.
A 10 de Julho de 1990, a República de Portugal e o ESO assinaram um acordo de cooperação, visando a adesão plena de Portugal ao ESO no prazo de 10 anos. © ESO
O Acordo de Cooperação com o ESO, celebrado em julho de 1990, garantia a Portugal “o estatuto de observador” e definia um processo de transição para que pudesse aceder à condição de Estado Membro de pleno direito”. Seria preciso esperar dez anos até que Portugal solicitasse formalmente a adesão como Estado Membro, o que acabou por acontecer em dezembro de 2000. Portugal contribui anualmente para os custos de operação do ESO, o que traz ao país, em troca, a possibilidade de equipas de investigação portuguesas terem acesso à participação científica em projetos da Astronomia e da Astrofísica.
“A participação portuguesa abre a possibilidade de fazer parte de programas mais alargados. Vale a pena o investimento nestes programas; os países investem e, depois, temos direito a um número de noites para observações nos telescópios do ESO, o que é muito bom”, explica António Amorim, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que também é o co-investigador português do GRAVITY, o instrumento de segunda geração do Very Large Telescope Interferometer (VLTI) do ESO.
Um universo em expansão
Para Alexandre Cabral e Manuel Abreu, também do IAstro, “é difícil distinguir um ou dois momentos de especial relevância para a comunidade portuguesa que trabalha em Astronomia, Astrofísica e no Espaço, sobretudo porque esta se desenvolveu ao longo de muitos anos”, mas referir momentos como o PoSAT, o primeiro satélite português, e as adesões à ESA e ao ESO, é incontornável.
Na década seguinte, em 2005, um outro projeto marca o percurso nacional nos campos da Astronomia. O CAMCAO – Camera for Multi Conjugate Adaptive Optics foi “o primeiro instrumento de astrofísica português”, refere António Amorim. Encomendado pelo ESO, o CAMCAO foi a primeira câmara de infravermelhos de alta resolução e de largo campo de visão a ser usada com ótica adaptativa — e “teve todas as vicissitudes de quem começa”. Ainda bem: depois, a expertise adquirida no início dos anos 2000 com o CAMCAO permitiu que uma equipa portuguesa também integrasse o GRAVITY, para o qual “havia a necessidade de fazer uma câmara de infravermelhos”.
Assinatura do Acordo Portugal-ESO em 27 de Junho de 2000, na Sede do ESO em Garching, Alemanha. © ESO/H. Heyer
Também na ESA têm crescido as participações da comunidade académica e da indústria em programas científicos, alguns em fase de implementação, outros já em operação, nomeadamente os projetos PLATO, EUCLID, ARIEL, CHEOPS, GAIA ou LISA. “No ESO, que terá eventualmente uma participação mais recente no desenvolvimento de instrumentos, destacaríamos o ESPRESSO, MOONS, ALMA, GRAVITY e os recentes envolvimentos nos instrumentos do futuro ELT, METIS e ANDES”, acrescentam Alexandre Cabral e Manuel Abreu.
A adesão portuguesa à ESA e ao ESO também trouxe a experiência para saber que “astronomia não é só usar telescópios e perceber o que nos estão a revelar”, sublinha José Afonso. Para fazer “boa ciência e com impacto, temos de, ainda mais do que isso, estar envolvidos na construção dos telescópios”. Por isso, o co-fundador do IAstro considera que “é essencial ter a capacidade de fazer parte de um consórcio internacional, participando na definição científica do que vai ser feito, mas também construindo parte” das tecnologias que serão utilizadas.
Empresas portuguesas participam cada vez mais
Alexandre Cabral e Manuel Abreu estão de acordo quanto à evolução da participação portuguesa nestas áreas do conhecimento, falando de um crescimento “relevante com a multiplicação de participações nas missões e instrumentos da ESA”, mas reconhecem que não sabem se existe “uma contabilidade recente do número de pessoas, universidades e empresas com ligações claras a esta área de conhecimento”.
Se a academia cresceu em “capacidade científica e de desenvolvimento aplicado”, as empresas também “têm vindo a demonstrar uma maior prontidão tecnológica em muitas das tecnologias relevantes para a Astronomia e Astrofísica, quer em instrumentos de voo, quer em instrumentos baseados em observatórios em Terra”, indicam Manuel Abreu e Alexandre Cabral. Os dois investigadores notam ainda que houve “um aumento do reconhecimento mútuo em termos das competências e capacidades respetivas” entre academia e indústria.
O Square Kilometre Array Observatory (SKAO) é um bom exemplo da necessidade de unir teoria e prática com vista a abrir ainda mais portas para o conhecimento: “O SKA é uma ideia revolucionária. Agarra no que se conhece hoje e pergunta: ‘E se tivermos uma tecnologia 100 vezes melhor? O que podemos alcançar?’”, introduz José Afonso. Com o SKA, que será o maior telescópio alguma vez construído, é esperada “uma revolução no conhecimento” — e isso inclui mais informação sobre “a formação de estrelas e planetas”, mas também de “coisas mais distantes”, como a “pesquisa das primeiras galáxias ou do primeiro gás que existe no universo”.
© SKAO
E as empresas portuguesas têm dito presente nesta busca pelo conhecimento do universo: “Tem havido um esforço ao longo dos últimos anos e as empresas estão cada vez mais despertas para este desenvolvimento científico e tecnológico, porque não há nada mais exigente do que o conhecimento do universo.” Portugal é, de resto, um dos membros fundadores do SKAO, o que permite que os centros de investigação e a indústria nacionais estejam estreitamente ligados ao desenvolvimento da rede de telescópios — tanto que, recentemente, duas empresas e uma faculdade portuguesas ganharam contratos de 3,1 milhões de euros para participarem no desenvolvimento do software da estrutura.
“A participação portuguesa em posição de coliderança em diversos projetos mostra a qualidade da academia e indústria nacionais. E não só estão na linha da frente em projetos científicos importantes, como é o caso do SKAO, como estimulam o desenvolvimento das capacidades tecnológicas nestas áreas no ecossistema espacial português”, considera Cláudio Melo, responsável pelos projetos de Ciência da Agência Espacial Portuguesa.
Mas a contribuição da indústria portuguesa em projetos relevantes nestes campos não se esgota num só caso. O ISQ é um dos organismos portugueses com vários exemplos para dar. O centro de investigação sediado em Oeiras incluiu a engenharia aeroespacial no seu leque de áreas de atuação em 2003 e participou no ALMA (Atacama Large Millimeter/submillimeter Array), um telescópio que opera no alto do planalto de Chajnantor, nos Andes chilenos, e que procura as nossas origens cósmicas.
“Tem havido uma intervenção continuada no ELT [Extremely Large Telescope]. O ISQ esteve envolvido desde o início, ainda na fase anterior ao arranque do fabrico dos componentes principais”, informa Paulo Chaves, responsável pela área aeroespacial do centro. “Essa participação deu-se, primeiro, com o trabalho realizado a partir de Portugal e, depois, numa segunda fase com a equipa permanente em Garching”, nas instalações do ESO em Munique, na Alemanha. Esta equipa acompanha o ELT “não só a nível de base”, estando a acompanhar “os processos de conceção, integração e montagem”.
Com os olhos no MOONS
Para José Afonso, o facto de existir um forte envolvimento da academia e da indústria portuguesas em projetos científicos acontece por um motivo muito simples: “Conseguimos estar envolvidos em várias missões porque temos, efetivamente, essa capacidade.” Além disso, essa “competência e profissionalismo” têm sido acompanhados “pelo reforço de confiança dos parceiros europeus que reconhecem a capacidade e a qualidade da contribuição portuguesa”, ressalvam Manuel Abreu e Alexandre Cabral.
“Este aumento de colaboração nos consórcios e nas missões científicas só são possíveis quando enquadradas numa estratégia de financiamento que reconheça a importância destas participações, mas sobretudo o carácter de longo termo que caracterizam estas missões, muitas vezes para além dos ciclos políticos normais”, frisam ainda os investigadores.
Portugal tem vindo a reforçar o apoio institucional ao desenvolvimento das ciências espaciais. Nas duas últimas reuniões Ministeriais da ESA aumentámos a subscrição do programa PRODEX da ESA, por exemplo. E é através deste programa que conseguimos apoiar a participação nacional no desenvolvimento de instrumentação das missões científicas da ESA”, diz Claudio Melo. Em novembro de 2019, Portugal colocou 3 milhões de euros no envelope financeiro que financia o desenvolvimento industrial de instrumentos científicos e experiências. Um valor que compara com os 750 mil euros subscritos em 2016.
Essa estabilidade é bem-vinda e necessária já que tanto na astronomia terrestre quanto nas missões espaciais, os programas são delineados anos antes da sua implementação na medida em que cada instrumento, como os anteriormente referidos, “define o conhecimento nos próximos 10 ou 20 anos”. Prepará-los para a fase de operacionalização é um processo demorado, que requer a entrega e empenho de todas as partes.
Exemplo disso é o espectrógrafo MOONS (Multi-Object Optical and Near-infrared Spectrograph). O instrumento vai ser instalado no VLT “e será capaz de observar em detalhe até 1000 galáxias ao mesmo tempo”. “Não se trata de obter apenas a imagem da galáxia, mas também de espectro, que dará informações sobre os processos físicos que estão a decorrer em determinado momento”, sintetiza José Afonso. O objetivo é, no fundo, “conhecer com algum detalhe o universo mais próximo à nossa volta”.
A construção do MOONS está quase concluída. ©DR
Um dos seus componentes principais, o corretor de campo, tem vindo a ser desenvolvido por investigadores do IAstro. José Afonso, co-investigador principal neste projeto, explica que o processo remonta a 2009: “Foi desenhado, foi proposto, foi aceite e tem estado a ser desenvolvido e construído por nós, em Portugal. O componente é responsável pela qualidade da imagem do MOONS; garante que em toda a observação a qualidade da imagem é muito boa.” No próximo ano, o componente vai ser lavado para o Chile para ser instalado no VLT. Depois, a partir de 2024, seguem-se “cinco anos” de utilização intensiva para observação e estudo.
Haverá muitas noites pela frente — afinal, o objetivo é “observar meio milhão de galáxias a uma distância de 6 a 7 mil milhões de anos-luz e conseguir perceber como era a população de galáxias nessa fase”. Para quem, como ele, descobriu o fascínio pelo universo através das últimas páginas de um livro, não será tarefa difícil. Mais do que isso, participações e contribuições como esta não só puxam pelo “desenvolvimento tecnológico” como permitem que Portugal tenha “uma palavra muito forte na astrofísica” e noutros ramos da astronomia.