André Moitinho de Almeida: da insustentabilidade do lixo espacial ao brilho da Via Láctea

Professor e investigador na FCUL, especialista no estudo da Via Láctea, Presidente da Sociedade Portuguesa de Astronomia. O currículo de André Moitinho de Almeida é extenso, e nele também cabe algo que tira espaço ao Espaço: o lixo espacial que se vai acumulando.

Imagine-se “uma autoestrada com uma multidão descontrolada de camiões, bolas e milhões de balas a voar”. Este não é só um exercício de criatividade: é mais ou menos o que se passa na órbita da Terra. Satélites operacionais orbitam entre “enormes quantidades de lixo espacial” e “outros objetos mais pequenos sem controlo”, num cenário que André Moitinho de Almeida descreve como um “autêntico faroeste resultante de décadas” de utilização e exploração espacial “sem regras”.

A sustentabilidade a longo prazo nas atividades espaciais é tema familiar ao astrofísico. Entre 2011 e 2020 fez parte do grupo de trabalho que se empenhou na “Sustentabilidade a longo prazo na Atividade Espacial” no COPUOS (sigla em inglês para Comité das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior). Dali saíram 21 diretrizes que, em 2019, o COPUOS acabaria por adotar para a sustentabilidade a longo prazo nas atividades espaciais. Mas já aí vamos.

Antes de se debruçar sobre a desordenada dança de destroços na órbita terrestre, André Moitinho de Almeida deixou-se fascinar pela Via Láctea, que ainda hoje lhe ilumina o trajeto. Nada como começar pelo princípio das coisas. “O meu interesse pela Astrofísica vem desde pequeno. Teria uns 5 anos quando recebi dois livros: um sobre céu noturno e outro sobre a exploração do espaço, que me deixaram muito impressionado. Li-os inúmeras vezes”, introduz.

Depois, viu o pensamento consumido pela “imensidão e variedade de coisas do espaço”. Para um miúdo em 1972, “tudo parecia possível” — até porque, recorda, “em menos de quatro anos tinha-se ido à Lua seis vezes”. “Por outro lado, Portugal era um país muito atrasado, muito diferente do que é hoje. Ser astrónomo ou astronauta, o que para uma criança parecia a mesma coisa, era inalcançável”, constata.

Pensou na Engenharia Electrónica como opção segura para seguir os estudos académicos, mas a “publicação pela Gradiva de livros de divulgação sobre Física e Astrofísica extraordinariamente cativantes” trocou-lhe as voltas. Estudou Física e, no mestrado, focou a sua tese em Astronomia. Mais uma “volta inesperada”.

 

O fascínio dos aglomerados estelares

Hoje professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e investigador no CENTRA (Centro de Astrofísica e Gravitação), André Moitinho de Almeida é também especialista no estudo da Via Láctea. E o interesse surgiu precisamente no mestrado, com o estudo de aglomerados estelares”, que o astrofísico considera “muito interessantes”: “A maior parte da formação estelar dá-se em aglomerados, que acabam por funcionar como os blocos fundamentais da construção das galáxias. A uma escala maior, as galáxias podem por sua vez considerar-se os blocos fundamentais do Universo e por isso entender como se formam e evoluem é uma das questões centrais da Astrofísica.”

 

 

Ao longo do seu doutoramento e carreira, André Moitinho de Almeida diz ter identificado e caraterizado, juntamente com os seus colaboradores, “milhares de aglomerados estelares” com o objetivo de obter um mapa e modelar “a estrutura e evolução da Via Láctea”. Em 2006, atirou-se para “uma grande aventura” que lhe permitiu vê-la “em super-resolução”: a missão Gaia, da Agência Espacial Europeia, “dedicada a criar um mapa dinâmico 3D da Via Láctea para estudarmos e estrutura e a evolução da nossa galáxia”, na qual desempenha o papel de coordenador nacional. A maior função, aponta, é “fazer com que as coisas aconteçam” — mesmo no meio de “imprevistos, falta de pessoas, de fundos e outras tempestades”.

 

Um perigo real

O que também tem gerado dificuldades na observação astronómica através de telescópios terrestres são, precisamente, as mega constelações de satélites já referidas por André Moitinho de Almeida. “Para além do rastro que deixam, inutilizando parte das observações, o seu brilho pode chegar a ser suficientemente grande para danificar os detetores”, explica o também presidente da Sociedade Portuguesa de Astronomia.

Há atualmente cerca de 5.700 satélites operacionais em órbita da Terra, dos quais mais de um terço já pertence às primeiras fases de implementação destas mega constelações. A mais conhecida, a Space-X, já tem licença do regulador americano para voar 12 mil e está a tratar de obter licença para 30 mil. Uma fração deles irá avariar, aumentando a proliferação de lixo espacial. Este números e este tipo de crescimento são claramente insustentáveis e poderão impedir um justo acesso ao espaço por parte de outros países”, alerta.

Resgatando-se a ideia de um faroeste de camiões, bolas e balas, chega-se ao risco real de “uma reação em cadeia de colisões com fragmentos”, que leva a “fragmentações e colisões sucessivas” — o síndrome de Kessle — que, por sua vez, podem “tornar as órbitas baixas inutilizáveis durante anos”. Mas para o cidadão comum, há algum perigo real? “Também há o risco da reentrada descontrolada de objectos que não se desintegrem totalmente na atmosfera, podendo eventualmente atingir pessoas ou bens”, responde André Moitinho de Almeida.

Ainda assim, ressalva, está-se a assistir “a uma evolução na perceção do tema da sustentabilidade espacial, acompanhada de medidas e políticas concretas”. Mas não se pode falar da sustentabilidade da exploração espacial sem antes se olhar para a questão maior das coisas: a sustentabilidade da própria atividade humana, assente num modelo “que depende do crescimento com recursos que pedimos emprestados ao futuro”. O tema não é novo, as preocupações também não — e “na exploração espacial passa-se o mesmo, pelas mesmas razões de fundo”.

Autor
Portugal Space
Data
6 de Junho, 2022