A observação da criosfera polar: desafios e oportunidades para Portugal
A partir da Antártida, Gonçalo Vieira, investigador do PROPOLAR, escreve sobre a necessidade de usar as tecnologias de observação da Terra para monitorizar as camadas de gelo do planeta. Por que razão é que as transformações que a criosfera sofre, devido às mudanças na temperatura atmosférica, geram enormes impactes na dinâmica ambiental a nível global?
A criosfera, composta pela fração do planeta que se encontra congelado, é uma das esferas mais sensíveis do Sistema Terra, estando suscetível a rápidas mudanças que geram impactes globais. Fazem parte da criosfera os mantos de gelo (inlandsis) antártico e da Gronelândia, os glaciares, as plataformas de gelo, o gelo marinho, os lagos e rios gelados, a neve, o permafrost (solo permanentemente gelado) e o solo gelado sazonal. A criosfera está especialmente presente nas regiões polares, marcando a dinâmica ambiental, mas é também muito relevante nas altas montanhas, das latitudes médias às tropicais, onde tem um papel-chave para a hidrologia e para as sociedades. O gelo é de extrema sensibilidade a pequenas mudanças na temperatura atmosférica e as transformações que sofre geram enormes impactes para o sistema climático global, com implicações mesmo em regiões do globo onde o gelo natural não ocorre.
A criosfera sempre se revelou hostil à vida humana e é, por isso, remota e até um conceito quase abstrato para grande parte da população do planeta. À vastidão da criosfera, à longa distância que dela nos separa e às condições meteorológicas extremas que a caracterizam, há que adicionar que nas regiões polares a noite domina durante vários meses do ano. Estes são fatores que condicionam fortemente a sua observação, pelo que a a sua monitorização põe enormes desafios técnicos, que só podem ser superados através de um esforço científico coordenado internacionalmente e com o apoio das novas tecnologias de observação da Terra. Os dados obtidos através de satélite estão na linha da frente, sendo exemplos disso os satélites operados pela Agência Espacial Europeia, no âmbito do Programa Copernicus financiado pela Comissão Europeia, como os Sentinel-1 (Radar) e Sentinel-2 (multiespectral). Estas plataformas com dados de acesso aberto são hoje amplamente usadas para a monitorização de diferentes variáveis criosféricas, tanto para fins científicos, como para aplicações. Contudo, a capacidade analítica está muito aquém dos dados disponíveis, pelo que urge fomentar uma melhor utilização dos dados, em especial num cenário de emergência climática como o que vivemos.
Monitorização de uma cicatriz de um deslizamento retrogressivo no Ártico canadiano, usando imagens do satélite de micro-ondas TerraSAR-X (DLR), que permite a observação mesmo em condições de céu nublado. © DR
As tecnologias de observação da Terra e o seu acesso cada vez mais fácil, quer seja pela acessibilidade das imagens, quer pela cada vez maior disponibilização de plataformas online que permitem a sua análise, vieram revolucionar as ciências naturais, oferecendo-lhes uma amplitude cada vez mais global. É assim possível, com custos muito reduzidos para o utilizador, centros de investigação ou empresas, conduzir análises e desenvolver técnicas avançadas e serviços competitivos ligados à criosfera, mesmo que nos encontremos numa posição geográfica longe dos polos.
O Centro de Estudos Geográficos (CEG) do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa tem sido uma das instituições nacionais que mais tem investido no estudo da criosfera polar. Com duas décadas de experiência na Antártida e uma década no Ártico, o CEG tem estado na linha da frente da monitorização do estado térmico do permafrost da Antártida. As suas valências na observação in situ associam-se à aplicação de técnicas de deteção remota, usando satélites multiespectrais e de micro-ondas, bem como veículos aéreos não-tripulados, para compreender as mudanças dos ambientes com permafrost do Ártico e da Antártida. São exemplos disso os trabalhos em curso no quadro dos projetos H2020 Nunataryuk, do EO4PAC (ESA), THAWPOND e PERMAMERC (FCT), levados a cabo no Ártico canadiano, ou do projeto PERMANTAR (PROPOLAR/FCT) na Antártida. O permafrost é uma das variáveis criosféricas mais importantes a nível do sistema climático global, em particular pelos seus impactes no ciclo do carbono e consequências para as emissões de metano e de dióxido de carbono. Figura, por isso, como elemento-chave na política europeia para o Ártico, apresentada em Bruxelas em Outubro passado.
Arriba talhada em permafrost no Ártico canadiano, com erosão anual de vários metros levando à transferência de matéria orgânica do permafrost para a atmosfera e oceano. © DR
O caso do CEG/IGOT é um exemplo de como instituições nacionais podem beneficiar das infraestruturas e de dados de observação da Terra para consolidarem a sua ciência, ou para promoverem a criação de novos serviços. Portugal tem hoje um sólido programa de investigação polar, o Programa Polar Português (PROPOLAR), que ao longo de mais de uma década tem fomentando o acesso às regiões polares para projetos científicos ou de desenvolvimento tecnológico. O PROPOLAR, além de abrir convocatórias anuais para projetos, proporciona também aconselhamento científico e técnico em estreita colaboração com o Programa Polar da FCT, visando consolidar a atividade científica nacional no Ártico e na Antártida.
Contudo, Portugal tem ainda aproveitado pouco o potencial das tecnologias de observação da Terra na área da criosfera, havendo amplas áreas do conhecimento para as quais instituições nacionais podem contribuir fortemente, e que certamente serão foco de concursos internacionais, em particular no quadro do programa Horizon Europe da Comissão Europeia. Nesse âmbito, é importante estar atento ao que se vai passando no quadro do EU Polar Cluster e às novas plataformas online a serem lançadas em breve pelo European Polar Board e pelo EU-PolarNet, bem como às prioridades identificadas no Integrated European Polar Research Programme, apresentado em 2020.