Critical Software e a audácia que a levou
a Marte e ao Sol
Criada nos corredores da Universidade de Coimbra, a Critical Software foi uma das primeiras start-ups a aparecer em Portugal. Quase 25 anos e outras tantas missões espaciais depois, a empresa prepara-se para liderar o desenvolvimento de um dos subsistemas de uma missão histórica: Clearspace-1.
O que chamar ao desejo incontornável de investir meses de trabalho numa tecnologia destinada à indústria aeroespacial num país como Portugal, que nunca lançou mais do que caravelas e naus para o mar? Irracionalidade, talvez? E o que pensar da coincidência de a tecnologia ficar pronta no momento em que a NASA anda pelo mundo à procura de algo semelhante? Um golpe de sorte. Essa irracionalidade e esse golpe de sorte transformaram uma obsessão num grupo que hoje emprega mais de 400 pessoas e continua a levar o nome de Portugal pelo mundo até ao espaço. A Critical Software, empresa especializada no desenvolvimento e comercialização de sistemas de informação críticos, foi uma das primeiras start-ups portuguesas quando em Portugal ainda nem se falava em empreendedorismo.
Passou perto de um quarto de século desde a publicação de um paper na IEEE Transactions on Software Engineering que chamou a atenção da agência espacial americana. O artigo falava da vulnerabilidade dos sistemas Windows, na forma de garantir que estas plataformas fossem mais robustas, e se há sítio onde nada pode falhar é precisamente no espaço.
À vontade de criar uma empresa e deixar as cadeiras da Universidade de Coimbra, juntava-se o imaginário do Cosmos, a série de televisão dos anos 80 de Carl Sagan.
O mundo fora da Universidade não podia ser tão hostil como o espaço, com condições adversas para os computadores a bordo das naves espaciais em que qualquer falha podia destruir em segundos investimentos de anos, ou, pior ainda, levar à perda de vidas humanas. Para acompanhar o ritmo de desenvolvimento tecnológico na terra, a NASA tinha passado a adotar as mesmas tecnologias que se usavam cá em baixo, mas precisava de garantir que não falhavam lá em cima. A recém-criada Critical Software tinha a resposta.
Gonçalo Quadros, João Carreira e Diamantino Costa, co-fundadores da empresa de Coimbra, foram contactados pelo Jet Propulsion Lab da NASA, centro tecnológico para o desenvolvimento de sondas espaciais, naquilo que foi o princípio de uma longa e proveitosa amizade.
A primeira dificuldade foi explicar aos senhores da NASA que Portugal não tinha uma agência, nem qualquer programa governamental que olhasse para o Espaço e que desse referências sobre o trabalho da Critical. O que valeu à empresa foi a qualidade da tecnologia, as credenciais académicas e o facto de estarem a sair de uma universidade com um reputado laboratório de tolerância a falhas. Uma vez convencida a NASA, João Carreira conta que partiu para os EUA, onde a pedido da NASA criou uma empresa de direito estadunidense, com sede em Pasadena. Foram, muito possivelmente, a primeira start-up portuguesa com uma subsidiária nos EUA. Abriram em 1999.
Não é difícil imaginar que assim tenha sido. Durante anos, quando no mundo floresciam empresas tecnológicas a um ritmo alucinante e pouco sustentado – a chamada bolha tecnológica rebentaria em 2000 –, existiam poucos exemplos de start-ups portuguesas. Gonçalo Quadros, João Carreira e Diamantino Costa, vistos como uma espécie exótica, eram convidados para palestras, para falar sobre como se criavam uma empresa, as dificuldades que enfrentavam.
É preciso uma certa dose de loucura para que três doutorados, com via aberta para seguir uma carreira académica, decidirem largar tudo para montar uma empresa com um produto sem aplicação no país.
Os bancos, por exemplo, recusavam-se a emprestar-lhes dinheiro. Esta é uma velha história, mas os fundadores da Critical Software tinham ganho, logo em 1998, o Prémio de Empreendedor do Ano, atribuído pela Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) e um ano de incubação grátis no IPN (Instituto Pedro Nunes, em Coimbra). Recorreram aos “famosos três Fs: Friends, Family and Fools [família, amigos e tolos]”, que ainda hoje, mesmo com uma maior abertura do mercado de financiamento, continuam a ser suporte de muitos jovens empreendedores.
Quase 25 anos depois, o mundo mudou. Portugal passou a ter um ecossistema de empreendedores reconhecido mundialmente, multiplica-se a inovação e também o número de pessoas com vontade de arriscar, de fazer diferente, de surpreender. Algumas empresas recém-criadas são já respeitadas a nível internacional, várias valem mais de mil milhões de dólares. Já a Critical Software, não só continua a trabalhar com a NASA, como acrescentou ao currículo a ESA, a Airbus Defence & Space, o EUMETSAT e a Thales Alenia Space, entre outros.
Recentemente, a Critical Software foi crucial para o desenvolvimento dos sistemas de voo do Solar Orbiter. Saíram dos laboratórios de Coimbra, para serem desenvolvidos na Airbus Defence & Space UK, os sistemas de comando e controlo central, deteção e recuperação de falhas e sistemas de gestão de comportamento térmico do satélite que foi lançado em Fevereiro de 2020 e que a 26 de Março de 2022 entrou na órbita de Mercúrio, aproximando-se como nunca antes do Sol.
A Critical Software é ainda uma das quatro empresas portuguesas envolvidas na missão ClearSpace-1 – que pretende recolher, capturar e transportar para a reentrada na atmosfera um adaptador de carga útil, denominado Vespa –, assumindo a liderança do desenvolvimento do software de bordo, bem como dos sistemas que irão gerir a captura do Vespa, a detecção e recuperação de falhas do sistema, o controlo do equipamento, e a gestão térmica e energética da nave. A Critical Software faz história ao ser, em conjunto com a Deimos Engenharia, uma das primeiras empresas portuguesas a liderar o desenvolvimento de subsistemas de uma missão.
Também é uma das três empresas portuguesas a produzir software para SKA, o maior radiotelescópio do mundo, com mais de um milhão de metros quadrados de superfície de recolha de dados, com quem trabalham desde 2016.
Escritórios da Critical Software no Reino Unido. © DR
Apesar da história de sucesso no setor espacial, este é apenas um dos segmentos de negócio da Critical Software. Sabendo que o injetor de falhas para a indústria espacial era uma tecnologia de nicho, diversificaram mercados e negócios. Apostaram nas telecomunicações, no sector automóvel, ferroviário, financeiro, na energia e na saúde. Houve um momento em que perceberam que a tecnologia que criavam tinha de ganhar asas, aventurando-se a lançar spin-offs, novas empresas de produto, com estruturas de gestão próprias. Empresas que desenvolvem tecnologias aplicadas à educação, que procuram ligar o conhecimento genómico com a prática médica, fabricam soluções de segurança.
Vinte e cinco anos depois, pode-se dizer que a sorte protege mesmo os audazes: hoje presente em quatro países, e com escritórios em nove cidades, a Critical Software emprega cerca de 950 pessoas. E a aventura espacial desta empresa portuguesa parece ainda ter muitos capítulos e histórias de sucesso para desembrulhar.