Ana Pires, a astronauta análoga que viu amanheceres marcianos no deserto

A investigadora do INESC TEC participou numa missão análoga na Mars Desert Research Station (Utah, EUA), ao longo de duas semanas. A estada em “Marte” foi difícil, mas rica em conhecimentos: “Todas estas experiências e aprendizagens são de extrema importância”, frisa.

Deserto do Utah, Estados Unidos. Terra avermelhada, formações rochosas acidentadas, solo seco, infértil. Pouco deixa adivinhar que, naquele local, estudam-se e testam-se possibilidades de outro mundo — literalmente. Pelas 06h00, o dia nasce e a paisagem que sol deixa antever faz parecer que estamos em Marte. Ana Pires, investigadora do INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência), viu este amanhecer marciano em solo norte-americano ao longo de duas semanas de maio, participando numa missão análoga que simulou a vida no planeta vermelho.  

Uma “oportunidade única” passada no habitat da Mars Desert Research Station (MDRS), da Mars Society, organização internacional vocacionada para a defesa do espaço e que tem como objetivo a colonização humana permanente de Marte na próxima década. No deserto, todos os dias “eram diferentes”. Uma missão como esta, que isolou a Ana e a restante Crew 281 no Utah, é complexa.  

 

Ana Pires passou duas semanas no deserto do Utah, nos Estados Unidos. © DR

 

“O principal objetivo é simular uma missão a Marte, efetuar atividades extraveiculares [EVA] com os mockups dos fatos espaciais, testar comunicações entre a equipa de EVA e o habitat, realizar percursos com os rovers existentes, reportar todas as atividades à ‘mission support’, cozinhar e comer comida desidratada muito semelhante à dos verdadeiros astronautas e realizar as nossas experiências científicas ao longo da missão”, explica Ana Pires. 

Nesta última missão, foi a cientista da Crew281, denominada de “Pegasus”, da qual faziam parte mais três colegas dos Estados Unidos da América e da Índia. A sua participação contou com o apoio da Agência Espacial Portuguesa, do INESC TEC, ISEP, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), do Women in Tech Portugal, da empresa de telecomunicações Decunify, da Ooze Nanotech e da Fundação Vasco Vieira de Almeida. 

 

Os tons avermelhados do deserto do Utah lembram Marte. © DR 

 

A astronauta análoga portuguesa partiu para o deserto com um objetivo “muito claro”: “Como cientista, quis realizar um estudo geológico-geotécnico da área, testar geotecnologias para a medição da dureza das rochas e testar um subsistema de recolha de amostras.” O estudo, conta, “seria uma avaliação preliminar para a construção e engenharia em Marte, já que o objetivo será, no futuro, construir campos de base”. 

Por lá, testou ainda os primeiros protótipos de t-shirts com têxteis inteligentes, desenvolvidos por uma empresa de Guimarães, a Ooze Nanotech, preparadas para ambientes extremos, uma vez que o vestuário “tem uma grande importância dos astronautas”.  

 

Uma missão difícil, mas que deixa saudades  

Normalmente, as atividades efetuadas fora da estação eram realizadas durante a manhã “para evitar as altas temperaturas do deserto”, enquanto as tardes eram dedicadas ao tratamento de dados e pesagem de amostras. Colhiam-se legumes da estufa, que eram analisados de acordo com o peso e “níveis de energia e água”. “Durante a tarde, aproveitava sempre para me deslocar ao longo dos túneis de acesso para um dos espaços denominado por Science Dome, um dos meus locais preferidos, onde trabalhava e apreciava a vista da janela para o exterior de ‘Marte’”, acrescenta. 

O jantar também tinha de ser preparado, salvo quando havia “restos do almoço”. No meio de tudo isto, havia relatórios “que tinham de ser submetidos todos os dias” e “fotografias para selecionar” até às 21h00, hora-limite para o acesso à internet (que apenas estava disponível a partir das 18h00).  

 

O “manuseamento de equipamentos e tecnologias” e “a recolha de amostras” eram tarefas árduas. © DR

 

Num cenário hostil e de isolamento, a tecnologia e o meio ambiente não são os únicos objetos de estudo. “A parte social também foi um desafio”, diz Ana, para quem “as relações sociais são de máxima importância numa missão deste tipo”.  

Uma missão análoga é um desafio constante. Ao fato espacial, usado nas atividades exteriores, juntavam-se “cerca de 20 quilos às costas” e as luvas não facilitavam o “manuseamento de equipamentos e tecnologias” nem “a recolha de amostras”; conduzir rovers com o fato espacial não era a experiência mais agradável e a isso juntava-se “a falta de visibilidade com o capacete colocado”.  

Cozinhava-se com “ingredientes desidratados” e, por conseguinte, lidava-se com a “adaptação do corpo a esse tipo de comida”; trabalhava-se com “água e comida racionadas”; escreviam-se vários relatórios todos os dias. E havia, claro o isolamento do mundo exterior.  

Como ultrapassar estas adversidades? “Focando-me nos meus objetivos: estou aqui para aprender, experimentar, e trazer dados científicos.” Mesmo que tenha sido “muito intenso e difícil”, Ana Pires não tem dúvidas: “Vou ter saudades da missão. Já estou com saudades!” 

Ainda assim, admite que é bom voltar “a casa”. E fazer o que gosta: passear na praia de Espinho, de onde é natural, aproveitar os mimos de Kwanza, uma cadela “cheia de energia”, ver “Family Guy”, ler, assistir a concertos, ouvir música e tocar “viola, piano ou harmónica”. Ou um café em Santa Maria da Feira, terra que a viu crescer. “Coisas simples, mas que me fazem muito feliz”, resume.   

 

A investigadora considera que esta experiência é de “extrema importância” para Portugal. © DR 

 

Não há inovação sem sustentabilidade  

Café foi o que não lhe sobrou no final da missão no Utah. A ração que levou para o deserto era suficiente para duas semanas, mas terminou “dois dias antes do final”. Mas Ana Pires trouxe algo que a desperta e estimula muito mais: “Todas estas experiências e aprendizagens são de extrema importância para Portugal, para a minha instituição, o INESC TEC, e para mim, como cientista. Todos os dados obtidos ao longo desta missão serão alvo de tratamento para futuras publicações científicas”, avança.  

A candidata a cientista-astronauta revelou, na edição deste ano do GLEX Summit, que a Gruta do Natal, na Ilha Terceira, vai ser palco da primeira “missão espacial análoga a Marte” em Portugal. O conhecimento adquirido no Utah pode servir de grande ajuda para a Cave Analog Mission (CAMões).  

À parte disso, e como apaixonada “pela educação e comunicação”, – reuniu material para, mais tarde, “mostrar aos mais jovens”: “Dediquei-me a adquirir muitas imagens e fiz muitos vídeos educacionais”. Este é, também, um dos seus passatempos preferidos, já que diz adorar dedicar-se à promoção de “atividades STEAM nas escolas, jardins de infância, com crianças e mais jovens.”  

Afinal, é para eles que ficará o nosso planeta, “que vale a pena preservar”. A ciência contribui para isso e, defende a investigadora, só há “inovação com sustentabilidade”. “A sustentabilidade cabe a nós, humanos, investigadores. É nossa responsabilidade, mas, para isso, precisamos de todas as mentes a trabalhar em conjunto, todas as abordagens, e de equipas multidisciplinares, num objetivo comum: evoluir.” 

É esta a linha de pensamento que tem regido o trabalho de Ana Pires no CRAS desde 2017. Estuda, desde então, a interação entre três esferas diferentes, mas bastante conectadas: “Muitas das tecnologias que se desenvolvem para a Terra ou para o Mar podem ajudar na exploração do Espaço. E vice-versa: a tecnologia do Espaço pode ajudar a resolver problemas aqui na Terra. Para mim, tudo se interliga. Inovação com sustentabilidade é o nosso desafio, em todas as dimensões, na Terra, debaixo do Mar e no Espaço.”  

Autor
Portugal Space
Data
25 de Julho, 2023