João Lousada: “A primeira pessoa a caminhar
em Marte já nasceu”
O engenheiro aeroespacial já participou em quatro missões análogas, cujo objetivo é simular as condições de vida em ambientes extremos.
Foi o caso da última, passada em Negev, Israel — um deserto que em muito se assemelha a Marte, onde,
acredita João Lousada, estamos muito perto de deixar uma pegada.
Em outubro do ano passado, Marte ficou no Sul de Israel. As características do deserto de Negev, que cobre grande parte daquele país, são bastante semelhantes às do planeta vermelho. Por essa razão, o extenso deserto serviu de cenário à missão AMADEE-20, que simulou as condições de vida em Marte. A isto se chama uma missão análoga: “Ao simularem diferentes ambientes espaciais, estas missões permitem-nos testar antecipadamente o equipamento e as experiências que queremos realizar nesses ambientes”, introduz João Lousada. O que se procura é “cometer o máximo de erros aqui na Terra”. Só o erro permite antecipar e corrigir problemas em equipamentos, por exemplo, para os evitar em futuras missões em Marte “ou noutro ambiente que estejamos a simular”.
O astronauta análogo João Lousada leva quase uma mão cheia de missões deste tipo. A de Negev foi “a mais desafiante” e, também, a primeira em que comandou a tripulação selecionada pelo Fórum Espacial Austríaco (OeWF). A oportunidade de realizar este tipo de missões surgiu “em 2015, quando o OeWF lançou um concurso para a posição”. Para o lisboeta, fez todo o sentido candidatar-se, dada a sua vontade de “contribuir para o futuro da exploração espacial”.
A verdade é que o também engenheiro aeroespacial contribui diariamente para a ambição humana de explorar o Espaço. O seu dia-a-dia desenrola-se no Centro Alemão de Operações Espaciais, em Munique, Alemanha, onde lidera o grupo de controladores de voo que gere o Columbus, o módulo europeu da Estação Espacial Internacional (ISS na sigla inglesa). É o primeiro português diretor de voo na ISS.
Tal como nas missões análogas, o trabalho de João Lousada no Centro de Controlo Columbus é bastante desafiante — até porque “cada dia a bordo da Estação Espacial Internacional é um dia diferente”. “Um dia podemos estar a realizar experiências fisiológicas, físicas ou biológicas, outro dia podemos ter a chegada de um veículo espacial com novos mantimentos ou até com novos tripulantes… Noutro dia podemos ter de lidar com uma emergência ou outro problema nos sistemas de suporte de vida ou de energia da estação”, explica.
O astronauta análogo João Lousada leva quase uma mão cheia de missões análogas. © DR
Foi o que aconteceu recentemente, em junho, com a destruição de um satélite criou “um grande campo de detritos espaciais com possível risco para a ISS”. “Foi certamente um dos turnos mais intensos que já tive”, conta João. Quando a equipa recebeu a notificação do incidente “os astronautas estavam já a dormir”.
“Tivemos de os acordar, de modo a reagirmos rapidamente, em conjunto, de acordo com o nosso treino e com os procedimentos estabelecidos. Começámos por isolar os módulos radiais — ou seja, aqueles mais expostos a um possível impacto — e a reconfigurar os sistemas da estação, como o sistema de suporte de vida, para lidar com esta situação”, começa por explicar.
Enquanto acompanhavam a órbita dos detritos e calculavam o risco de colisão, e devido à proximidade das duas órbitas, os astronautas foram isolados “dentro das suas naves espaciais, de modo a poderem rapidamente evacuar a estação espacial e regressar à Terra em segurança, em caso de um impacto maior.” “No caso de um impacto menor, medido através da perda de atmosfera dentro da estação, tentaríamos ainda voltar a entrar na estação, encontrar e isolar a fuga de ar”, conclui.
Apesar do susto e da adrenalina, João recorda que foi “excelente” ver como as diferentes equipas, “tanto controladores de voo como astronautas, reagiram rapidamente e eficazmente a uma situação de grande risco”.
Situações como estas resumem bem a responsabilidade de um diretor de voo. João é responsável “por liderar os diferentes controladores de voo das diferentes especialidades”, assegurando que “as equipas trabalham em conjunto e de acordo com os objetivos da missão, definindo prioridades e decidindo como reagir em casos de emergência ou de outros problemas” e, “acima de tudo mantendo a segurança dos astronautas a bordo”, como foi o caso.
Tudo isto quer dizer que, muitas vezes, os controladores de voo têm de trabalhar “por turnos para cobrir 24 horas, pois desempenham funções essenciais” — e isso inclui feriados e fins de semana. “Nesse sentido, não existe um dia típico para um controlador de voo, o que também pode ser visto como um ponto positivo, já que certamente o trabalho não fica aborrecido!”, aponta João Lousada.
Desafios constantes
Já deu para perceber que o português é dado a desafios — seja num deserto ou a partir do Centro Alemão de Operações Espaciais. E até mesmo nos seus tempos livres: “Gosto principalmente de desportos e passatempos que utilizam uma componente técnica ou ingenuidade humana para conquistar ambientes inacessíveis de outra forma, como o mergulho, escalada, paraquedismo, aviação ou snowboard.”
No entanto, não há nada como um deserto semelhante a Marte. Voltemos a Negev. Nesta missão, João Lousada liderou uma tripulação composta por mais cinco astronautas análogos de vários países. “Não só tivemos uma maior complexidade de missão, como foi a nossa missão de maior duração, foi onde estivemos mais isolados do mundo exterior”, conta. Como comandante da missão, tinha a responsabilidade de assegurar o seu sucesso, mas também “a segurança de todos que faziam parte dela”.
João é o primeiro português diretor de voo na ISS. © DR
Não é tarefa fácil. Toda a tripulação precisa de ter “uma boa condição física e mental para lidar com os ambientes desafiantes destas missões”. É que, como astronautas análogos, os membros que constituem este tipo de missões também têm de envergar um fato pesado, “com 50 quilos no total, que dificulta movimentos”. Num ambiente “normalmente quente” e no qual o terreno não é simpático, é fácil imaginar o grau de dificuldade.
A missão também é desafiante do ponto de vista mental: os astronautas análogos estiveram isolados do mundo exterior durante quatro semanas (de 4 a 31 de outubro de 2021). “Tal como numa missão a Marte, não temos comunicação direta com o nosso centro de controlo — apenas com um atraso de 10 minutos na comunicação. E talvez não pareça ser muito, mas esses 10 minutos já impossibilitam um contacto direto, como uma chamada telefónica ou uma vídeo conferência”, contextualiza. Assim, essas limitações “acabam por ter um impacto no nosso contacto com a família e com os amigos”. “Eu diria que essa é sempre a parte mais difícil destas missões.”
Marte aqui tão perto
O interesse de João Lousada pelo Espaço começou precisamente em ambiente familiar, nos verões da infância passados com os avós: “Lembro-me de sair com eles para ver o céu estrelado. Sendo de Lisboa, ficava sempre impressionado com a quantidade e diversidade de estrelas que observava na terra dos meus avós.” O gosto pelo infinito do Espaço estendeu-se pelos anos e, mais tarde, apostou nesta área para seguir estudos: primeiro com Engenharia Aeroespacial no Instituto Superior Técnico, a que se seguiram a Universidade Politécnica da Catalunha e a Universidade de Victoria, no Canadá. Agora, o foco é o planeta vermelho.
O português liderou a missão análoga no deserto de Negev. © DR
Estamos “mais perto do que muitas pessoas pensam” de, finalmente, deixar uma pegada em Marte. “Existem desafios e problemas que temos ainda de resolver e, por isso mesmo, tem sentido realizar estas missões análogas. Mas acredito que será apenas uma questão de tempo até os resolvermos”, constata. Tão perto que se arriscam fortes previsões: “Acredito veementemente que a primeira pessoa a caminhar em Marte já nasceu!”
Idealizá-lo também motiva João Lousada no seu trabalho e nas exigentes missões em que participa. “Pensar que poderei ter contribuído para essa primeira pegada na superfície de Marte é algo certamente especial.”