Educação para o espaço: da aposta nas engenharias às novas perspetivas académicas

As vagas para o curso de Engenharia Aeroespacial foram aumentando ao longo dos anos — tal como as médias de entrada. E há cada vez mais universidades a incluirem o curso na sua oferta educativa. As boas perspetivas de emprego parecem justificar o interesse crescente,
mas o fascínio pelo Espaço também é um bom motivo para se fazer esta escolha no Ensino Superior — e muitas outras, até porque o Espaço não se restringe a um curso.

No último ano letivo, o curso de Engenharia Aeroespacial do Instituto Superior Técnico voltou a destacar-se da restante oferta educativa do ensino superior português: o último colocado fixou a média de entrada em 19,05 valores. Mais a norte, e também em 2021/2022, a Universidade de Aveiro estreou, com valores igualmente altos, o mesmo curso: o último colocado chegou ao Campus de Santiago com uma nota de candidatura de 18,6. Estes dados podem refletir uma aposta de vários jovens estudantes portugueses — que em breve terão mais duas opções, no Minho e no Porto —, mas há muito mais para lá de uma nota de entrada elevada.

O que justifica o interesse? Hipóteses há muitas, e nem todas ligadas ao fascínio, quase sempre desenvolvido desde a infância, pelo Espaço. As boas perspetivas de empregabilidade podem ser um fator de peso, assim como a multidisciplinaridade dos cursos. Mas vamos por partes.

“É um curso que garante pleno emprego. Há sempre mais procura do que oferta”, afirma Mara Caeiro, da QSR, consultora de recursos humanos a trabalhar com indústrias tecnológicas. De acordo com os números do Observatório de Empregabilidade dos Diplomados do Instituto Superior Técnico (OEIST), todos os diplomados daquela instituição em Aeroespacial do ano letivo de 2017/2018 encontraram emprego. “Quase 80% consegue o primeiro emprego num máximo de seis meses após a conclusão. São números muito significativos e de certa forma atrativos para quem tem uma média que permite a entrada em qualquer curso”, acrescenta Mara Caeiro.

 

Foi no Técnico que, em 1991, surgiu a primeira licenciatura em Engenharia Aeroespacial do ensino superior português, com “uma turma de apenas 35 alunos”, recorda Fernando Lau, Professor Associado no Técnico e coordenador do curso de Engenharia Aeroespacial nesta faculdade. Ao longo dos anos, o interesse dos alunos pela Engenharia Aeroespacial acompanhou o desenvolvimento do setor espacial em Portugal. Isso refletiu-se na oferta formativa do Técnico para o curso: em 2009, foi introduzido o ramo de Espaço no segundo ciclo de estudos, que se juntou aos de Aeronaves e Aviónica. A par disso, “as vagas de acesso da primeira fase foram sendo aumentadas de uma forma sustentada” ao longo dos anos, refletindo também a “reputação de ensino de elevada qualidade que sempre esteve associado ao Técnico” e a interdisciplinaridade inerente ao plano de estudos.

Por outro lado, a licenciatura em Engenharia Aeroespacial da academia aveirense teve a sua primeira turma no ano letivo passado e concretiza relações antigas. “A Universidade de Aveiro [UA] tem um passado no desenvolvimento de soluções espaciais que remonta à década de 80, com colaborações com a Agência Espacial Europeia [ESA], ainda Portugal não era membro da mesma”, contextualiza Nuno Borges de Carvalho, diretor do curso. E foi por isso que, à UA, pareceu “razoável ter um curso focado na componente aeroespacial, permitindo levar estes conhecimentos aos alunos e posteriormente aos profissionais na área”.

 

Um universo de oportunidades

Mas a “inquestionável atração que o ser humano tem pelo imaginário espacial”, como diz Fernando Lau, também pode servir como forte argumento na escolha de um percurso académico ligado ao Espaço. E esse caminho não tem de, obrigatoriamente, passar pela Engenharia Aeroespacial.

Alexandre Cabral entrou para a universidade “no final dos anos 80”, pouco antes da criação de Aeroespacial no Técnico, ingressando em Física Tecnológica na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL): “Era parecido com o que são hoje as engenharias físicas. Tinha como base uma componente científica forte, mas tinha também uma componente de engenharia.” O hoje professor na FCUL e investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IAstro) encontrou o Espaço nos “últimos anos” da licenciatura. Ganhou gosto “pela ótica e pela instrumentação ótica”, numa altura em que se desenvolvia o primeiro satélite português, o PoSAT-1, que seria lançado em 1993.

 

A “inquestionável atração que o ser humano tem pelo imaginário espacial” também atrai estudantes para a astronomia. © ESO/B. Tafreshi 

 

Atualmente, o entusiasmo pela Astronomia e pela Astrofísica também tem aumentado, assegura Alexandre Cabral: “O interesse é crescente e variável. Há quem seja apaixonado pela Astronomia e Astrofísica, quem ache a componente da investigação mais desafiante; mas também há quem queira seguir o desafio das tecnologias na área do Espaço”. E essas são, também, áreas “críticas” no setor espacial. “Para o Espaço é fundamental existir Aeroespacial, mas também é bom termos alguém que olha para um sistema ótico e que sabe ir mais longe. Ou que saiba olhar para sistemas. É preciso pessoas de outros cursos”, aponta.

Até porque, no mercado de trabalho, “as equipas são multidisciplinares”. E se hoje a diversidade ainda se faz com profissionais de áreas mais tradicionais, o desenvolvimento científico e tecnológico está a abrir oportunidades para especialistas de domínios menos comuns.

“O Espaço é um meio muito particular, não natural ao Homem, e que, por isso mesmo, impõe novos desafios à sua saúde”, o que suscita “um interesse acrescido das várias áreas do saber científico” e reflete, ao mesmo tempo, novas necessidades, aponta Edson Oliveira, neurocirurgião e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). Foi precisamente neste estabelecimento de ensino que surgiu recentemente o Centro de Estudos de Medicina Aeroespacial (CEMA), um organismo que promete ser fundamental para o desenvolvimento da disciplina em Portugal.

E ainda que a faculdade lisboeta seja pioneira, a nível nacional, neste âmbito, Edson Oliveira acredita que “o ensino da Medicina Aeroespacial é cada vez mais abrangente e mais translacional e, no futuro, provavelmente mais faculdades de Medicina terão esta oferta formativa”.

A Medicina Aeroespacial “tem o objetivo de caracterizar os diversos sistemas do corpo humano e suas adaptações fisiológicas em relação à atividade aérea e ao meio aeroespacial”, compreendendo ainda “as implicações clínicas do ser humano neste ambiente”, explica o professor. No ensino desta disciplina, abordam-se “os princípios físicos que estão por detrás” das alterações que os órgãos e sistemas do corpo humano sofrem no ambiente espacial, “as suas consequências e as medidas que podem ser utilizadas para contrapor esses efeitos quando se tornam patológicos”.

 

O CEMA da FMUL é o primeiro centro do género em Portugal. © DR

 

No corpo estudantil da FMUL, diz Edson Oliveira, existe “um interesse crescente dos temas relacionados com o sector aeroespacial”, e a “procura desta oportunidade formativa também tem sido crescente ao longo dos semestres”. “O feedback que temos através dos questionários que realizámos é extremamente positivo e motivador para continuarmos a desenvolver esta área no seio da Academia. Na sequência da organização da disciplina temos alunos que passaram a desenvolver trabalhos científicos de qualidade no CEMA, alguns já apresentados em congressos”, acrescenta.

 

Espaço para Letras

O presente mostra que, na diversidade existente no setor espacial, já cabem profissionais provenientes de áreas do saber distantes da exatidão dos números. Carolina Rego Costa é um desses casos.

Quando a assessora jurídica da Agência Espacial Portuguesa se licenciou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o Espaço era “uma coisa para cientistas e engenheiros”. Hoje, o panorama educativo neste âmbito é diferente: “Já começa a haver oferta educativa nacional neste sector. A Universidade Nova tem um centro de investigação de direito espacial há já alguns anos, e a Universidade de Coimbra e a Universidade Portucalense começam a ter centros de investigação a trabalhar em projectos nesta área”.

E o que tem o Direito que ver com o Espaço? “O Direito Espacial visa, de uma forma muito resumida, enquadrar a actividade humana no espaço.” A Carolina Rego Costa explica que esse enquadramento tem sido feito através de “grandes princípios de atuação a que os Estados aderem e se comprometem a respeitar”. Isso inclui “a utilização do espaço exclusivamente para fins pacíficos, a colaboração científica e tecnológica, a assunção da responsabilidade dos Estados pelas actividades espaciais que licenciam, a assistência mútua e socorro a astronautas, a proibição de apropriação do espaço e a livre utilização e exploração do espaço em benefício da Humanidade”.

Assim, no trabalho, a “parte mais divertida” do dia-a-dia de Carolina Rego Costa passa mesmo por acompanhar e contribuir para várias questões que se vão levantando com o desenvolvimento da indústria espacial — mais que não seja pelo crescimento do peso da atividade privada, “e com uma vertente até mais comercial”, que necessita “de outro enquadramento” —, “tendo presente a lei das atividades espaciais” portuguesa.

Novos cursos, novos objetivos

E se o novo fôlego da indústria espacial obriga a adotar novos olhares e perspetivas sobre questões da lei, também reforça a necessidade de se “dar resposta ao mercado” para que ninguém “fique de fora da nova corrida espacial”.

É por esse motivo que Nuno Borges de Carvalho diz ter como certo que “há espaço para cada Universidade trazer o seu conhecimento e a sua marca para esta área”. No final do ano passado, a poucos dias da Cimeira Ministerial Intermédia da ESA em Matosinhos, o então Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, revelava que “estão em preparação novos cursos de Engenharia Aeroespacial” nas Universidades de Évora, Porto e Minho.

Por Évora, pensa-se este curso “desde 2014”, indicou a reitora daquela universidade, Ana Costa Freitas, à Renascença no final de 2021. A licenciatura enquadra-se na estratégia da Universidade de Évora, que definiu “quatro áreas âncora”, em que se inclui a “área aeroespacial e transformação digital”. Também o curso da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto se encontra em preparação.

 

EEUM estreia Engenharia Aeroespacial no próximo ano letivo. © DR

 

A aposta da Universidade do Minho (UMinho) ganhará forma já em Setembro, com licenciatura e mestrado. À semelhança do curso de Aveiro “funda-se no percurso desenvolvido, nas últimas décadas, pelos seus centros de investigação e unidades de interface nos setores aeronáutico e aeroespacial”, explica o Presidente da Escola de Engenharia da Universidade do Minho (EEUM), Pedro Arezes. O que distingue esta oferta educativa das outras? “A forte ligação a projetos que serão atribuídos aos alunos e por eles desenvolvidos, tendo por base uma abordagem de ensino baseado em projetos.” Além disso, o mestrado será “integralmente lecionado em língua inglesa, permitindo um intercâmbio expectável com outras instituições, docentes e alunos um pouco por todo o mundo”.

Os ventos parecem favoráveis para o descolar da carreira dos alunos destes cursos — seja em solo nacional ou internacional. “A indústria aeronáutica e espacial em Portugal encontra-se em franca expansão, não só devido às necessidades do mercado, mas também por causa das condições únicas que Portugal já oferece e poderá oferecer no futuro próximo”, afirma Fernando Lau. E as novas ofertas formativas respondem à estratégia Portugal Space 2030, que prevê o alavancamento da área em solo nacional — e, para isso, é necessário formar-se profissionais.

Autor
Portugal Space
Data
11 de Julho, 2022