Rosa Doran, a encantadora de professores

Carl Sagan dizia que a Astronomia era fundamental para explicar o lugar do ser humano no Universo. Rosa Doran usa-a para inovar na forma de ensinar e para encantar professores.

“O que mais quero no mundo é que as escolas não tenham paredes e que os professores parem de ensinar.” Rosa Doran não tem medo das palavras nem da polémica que estas podem causar. A única coisa que a coordenadora do NUCLIO  – Núcleo Interactivo de Astronomia e Inovação em Educação receia é não ter voz ou influência que lhe permitam passar a mensagem: “Destruam a escola, encham as salas de puffs e de skates, de espaços onde os alunos possam colaborar e transformem os professores naquilo que são: os professores não são livros de texto ambulantes, os professores são facilitadores de aprendizagem, companheiros de caminhada,  mas isso a escola não faz e eu não sei porquê.”

Não foram as palavras que chamaram a atenção da União Astronómica Internacional (IAU, na sigla inglesa) e que fizeram de Rosa Doran a vencedora da primeira edição do prémio de Educação em Astronomia, lançado por este organismo, que pretende distinguir pessoas ou organizações que contribuíram de forma significativa para a educação em Astronomia. Em comunicado, a IAU fala de uma “influenciadora fabulosa” e numa “líder global”, cujo objetivo” é mudar o mundo através da educação em astronomia”.

“O prémio ODE Educação 2022 foi atribuído a Rosa Doran pelas suas poderosas conquistas inclusivas, inovadoras, inspiradoras, abrangentes e transformadoras em educação em astronomia”, escreve a IAU no mesmo comunicado. Uma distinção que premeia três décadas a organizar, a garantir financiamento e a liderar “vários projetos de pequena e grande escala em países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, que chegaram a milhares de professores e alunos em todo o mundo”.

Na estante por detrás de Rosa Doran, enquanto esta conversa decorre, um globo terrestre e o livro “Cosmos” de Carl Sagan têm uma posição de destaque. O cientista americano tem, aliás, sempre lugar no discurso da educadora, que usa um episódio da série televisiva Pálido Ponto Azul para explicar a importância da Astronomia como disciplina central de inovação e educação, aquele que é o trabalho central do NUCLIO     .

“Carl Sagan fala da incapacidade do ser humano contextualizar a sua dimensão no universo e nesse sentido a astronomia é uma disciplina fundamental para o ser humano perceber o que é ser humano”, explica Rosa. “A astronomia é inter-trans-multidisciplinar, permite ensinar todos os conteúdos curriculares de qualquer disciplina”, garante.

Rosa, uma mulher determinada, de cabelo muito curto e grisalho, chegou tarde ao ensino da astronomia, ainda que este seja um amor antigo. “A paixão começou quando eu era pequena. Perdi o meu pai aos seis anos e a minha mãe disse-me que ele tinha ido morar para uma estrela — que hoje eu sei que é um planeta, Vénus —, e eu ficava horas a olhar para o céu, e de alguma forma achava que se podia viver numa estrela”, conta num tom pausado, ainda com um forte sotaque brasileiro, apesar dos anos passados em Portugal.

 

Rosa Doran numa palestra para uma turma de 200 alunas em Gujarat, na Índia. © DR

 

Bacharel em Física pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, fez o mestrado em Altas Energias e Gravitação na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e lá se apaixonou por Buracos Negros.

“Naquela altura não segui sequer a via académica. A vida levou-me a optar pelo mundo do trabalho, que foi um mundo que não gostei. Aprendi imenso, mas não gostei mesmo nada.” Durante alguns anos trabalhou como gerente financeira, desempenhou funções nas áreas de recursos humanos, comercial e de marketing.  “Enquanto foi um desafio, foi muito interessante, mas depois comecei a perceber que era um mundo que não me dizia muito. A perceção de fazer dinheiro só por si, sem ter um objetivo, não era o meu mundo. O mundo capitalista não era o meu mundo”, recorda hoje a partir da sua casa em Lisboa. A vida a acontecer voltou a ditar o seu caminho e a vinda para Portugal deu-lhe a oportunidade de voltar a entrar nos eixos.

“Quando cheguei a Portugal decidi que não queria mais esse mundo. Tive a oportunidade de encontrar uma porta aberta para fazer o meu mestrado na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e a sorte de encontrar um orientador extraordinário, o professor Paulo Crawford, que me ajudou a navegar uma parte da compreensão do universo, os buracos negros. Foi uma paixão absoluta.”

Rosa estava já a fazer o Doutoramento quando, juntamente com alguns colegas, foi convidada a fazer a revisão científica de um dicionário de Astronomia e Astronáutica. “Percebemos que havia muito pouca coisa em português e criamos o Portal do Astrónomo, que ainda existe, não com tanta força, mas ainda com bastante informação”. Foi também nessa altura que, em atividades de divulgação pelo país fora, perceberam que faltavam aos professores formação e ferramentas para ensinar astronomia. “Este passeio pelo país fez perceber que o que as pessoas sabem de astronomia é muito limitado e que os professores não tinham formação, decidimos nos tempos livres dar formação para professores e workshops para as escolas”. Nascia, assim, uma das primeiras atividades do NUCLIO     , hoje chamada de NUCLIO      on the Road.

Pela mesma altura, Ana Mourão, professora do Instituto Superior Técnico, foi desafiada para lançar a versão europeia do projeto Hands on Universe, mas sem que conseguisse agarrar o projeto, acabaria por chamar Rosa e outros professores para darem uma ajuda. “Foi o levantar de um cortinado que deixou ver alguma coisa de diferente na área da educação”, conta duas décadas depois. “Encontrei um grupo de pessoas que queriam adaptar para a Europa o modelo americano, nascido na Universidade de Berkeley, na Califórnia, que pretendia transformar a investigação científica em algo que os estudantes pudessem trabalhar em sala de aula, por os estudantes a descobrir supernovas, a fazer curvas de luz de supernovas, a perceber como se comportavam.”

Em 2006, Rosa Doran conhecia Carl Pennypacker, investigador e criador do projeto Hands on Universe, e esse foi o momento em que decidiu o que fazer “com o resto da [sua] vida”. “Vi-me numa sala no meio de um grupo de pessoas, cientistas, educadores, de mais de 20 países, que se juntavam todos os anos em algum lugar do mundo para discutir novas ideias para o mundo da educação e eu olhei para aquilo e disse: ‘That’s it’”.

 

“Acho que nunca fiz duas apresentações iguais em lado nenhum do mundo”, diz a coordenadora do NUCLIO. © DR 

 

Numa altura em que se começa a delinear o plano de trabalho para o Ano Internacional da Astronomia, Rosa propôs integrar a formação de professores nas atividades previstas. Com o sim de Pedro Russo, coordenador global do Ano Internacional da Astronomia, nascia o Galileo Teacher Training Program. Mais uma vez, pretendia-se levar a formação científica para a sala de aula     . “A ideia era ter um grupo de pessoas que em todo o mundo iam dando formação aos professores que queriam entrar no GTTP e num esquema em      cascata eles próprios darem formação a outros”, explica. Rapidamente chegaram a 100 países e em 2010 mais de 15 mil professores tinham já recebido formação e Rosa foi obrigada a tomar uma decisão: ou continuava a fazer investigação científica ou se “mergulhava de cabeça no mundo da educação”. O prémio agora recebido veio confirmar uma decisão com mais de uma década: “Achei que era mais útil na parte da formação de professores”.

“As pessoas começaram a chamar o Galileo Teacher Training Program de movimento e a dizer que eu tinha o poder de entusiasmar os professores para fazer a diferença, de lhe dar forças para abraçar aquilo que era difícil e acreditar que o impossível é  possível e eu decidi mergulhar de cabeça.”

A investigação científica passou a ser feita na sala de aula e sempre com um mote: “Isto é algo que não vou apenas fazer com os alunos privilegiados, é algo que vou fazer com todos”. Chama-lhe educação inclusiva e é este o mantra central do seu discurso. Fala da necessidade de trabalhar “o ensino à medida das necessidades e talentos dos alunos”, lembra que as crianças não são todas iguais e que “o ensino industrial é muito bom para uma linha de montagem, em que todos os carros devem ser montados da mesma forma”, mas que nem isso é preciso, porque “hoje em dia isso é feito por robots, não precisamos de humanos a fazerem isso”.

Em 2019 concluiu o doutoramento na Universidade de Coimbra em Ensino das Ciências. A tese foi sobre a forma como se pode melhorar o ensino das ciências na sala de aula:  On Teacher Training and Community Building for Innovation in Education: Strategies to improve science learning in classroom.

Rosa usa uma técnica a que chama design thinking: “Olho para o ser humano que está à minha frente e tento perceber o que lhe faz os olhos brilharem ou o que o faz cruzar os braços e afastar-se”, adaptando sempre o discurso ao interlocutor. “Acho que nunca fiz duas apresentações iguais em lado nenhum do mundo.”

O NUCLIO tem hoje mais de duas dezenas de projetos ativos, que vão desde a aprendizagem informal da ciência (Surrounded by Science), ao combate à poluição luminosa e à defesa do céu noturno (Dark Skies Rangers), passando pelo apoio à educação digital de escolas em áreas rurais e de baixa densidade populacional (Learning from the Extremes) ou o PLOAD (Portuguese Language Office of Astronomy for Develepment) que promove o uso da Astronomia como instrumento para o desenvolvimento.

As atividades do NUCLIO já chegaram a mais de 70 mil professores, em mais de 120 países, ao longo dos últimos 21 anos e Rosa Doran está longe de querer baixar os braços: “Não quer dizer que trabalhemos com todos permanentemente porque para isso é preciso financiamento. Fico muito triste quando percebo que a maior parte do meu tempo é gasto a pedir financiamento e a preencher relatórios e não a usar o meu talento que é encantar professores. Porque ser professor é a profissão mais importante do mundo. É na sala de aula que se desenha o futuro da humanidade.  Assim, enquanto puder, meu poder será deles …”

Autor
Portugal Space
Data
8 de Julho, 2022